quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O Ovo de Colombo


A diferença entre o lugar comum e o senso comum é, provávelmente, que o primeiro obscurece a realidade e o segundo a ilumina. Espero localizar-me na segunda esfera.

A nossa praxis na Quinta da Serra é, antes de mais, uma acção de capacitação das nossas crianças e jovens para o exercicio da cidadania. O ponto de partida é o sujeito em livre arbítrio. Cada ser humano contem em si, a essência estrutural e causal de toda a restante realidade física e, ao mesmo tempo, quer a identidade quer a própria realidade só se afirmam plenamente na relação com o outro. Arendt expressa assim, o último conceito: "Só quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de modo que os que estão à sua volta sabem que vêm o mesmo na mais completa diversidade, é que a realidade do mundo se pode manifestar de maneira real e fidedigna".

Mas a capacitação de crianças e jovens em que consiste? Se aceitarmos que cidadania é lexis e praxis, diálogo e acção em espaço público, entendido este não como espaço físico mas como lugar onde estão os cidadãos -Atenas onde estão os Atenienses- e se o diálogo se exerce com a nossa língua materna, como capacitar se não pusermos a lingua no centro do nosso campo de acção?

A dimensão política deste "senso comum" está expressa em plenitude no Pessoa do Livro do Desassossego quando nos fala inspirado por Vieira, duas figuras tutelares da nossa língua que assim se juntam:

"Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes - tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é - não - a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d'aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.

Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa....."



Todos os dias, na nossa acção com o "outro" somos levados a concluir que sem uma língua que nos una, sem essa pátria, só existe o deserto e o deserto em determinadas condições atmosféricas conduz às tempestades e à violência. A violência daqueles que condenamos ou que se condenam a si próprios ao silêncio.

Do ponto de vista escolar, temos, entre nós, situações de crianças que só sabendo falar crioulo não conseguem acompanhar o que se passa, não só nas aulas de português mas em todas as outras disciplinas. Essas crianças para quem pedimos apoio especifico na escola, só podem beneficiar dele depois de terem maus resultados comprovados. Existe uma ideia, errada, de que as crianças e jovens provenientes de países de lingua oficial portuguesa precisam de menos apoio ao nível da lingua portuguesa que os outros imigrantes.

Por outro lado, é essa lingua, essa pátria e mátria, que nos liga através da memória e das narrativas ao "outro" que nos cria as condições para o estabelecimento das identidades e também a capacidade da promessa, a visão da(s) nossa(s) possibilidades de futuro. Esta é uma reconciliação que é feita a partir de dentro. Uma reconciliação de paz numa memória marcada pela relação colonizador/ colonizado e muitas vezes pela guerra.

Melhorar por todos os meios ao nosso alcance a competência na lingua portuguesa, como instrumento e espaço de cidadania talvez seja o nosso ovo de Colombo, na resposta à pergunta de como intervir para a inclusão em sistemas cada vez mais complexos. Com a vantagem de resolver na prática a contradição que existe muitas vezes entre acções eficazes e acções fecundas.

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