quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Movimentos



Este fim de semana a reconstrução do campo de futebol teve mais um impulso importante. Mais mestres, mais ajudantes e muita gente a ajudar vai pondo de pé o projecto que os jovens pensaram. O muro já está completo, falta o rebouco e pintura, e já se deu inicio à construção das bancadas no lado Norte. Sente-se um grande entusiasmo de toda a gente e os vizinhos mais próximos do campo têm revelado intenções de alindar as suas casas para "não destoar".

Entretanto, ali ao lado, na sede da Associação estão a terminar as obras do infantário que está a ficar muito bonito. A Matuzende e a Irmazinha Glória estão agora nas arrumações finais. Abertura do infantário prevista em Novembro.



Estão sendo demolidas varias barracas à volta do campo de futebol. É um paradoxo que muitas vezes as pessoas concretizam assim: "agora que o bairro está sendo demolido pouco a pouco é que vamos ter finalmente as coisas que tanto queriamos". As coisas são o infantário, o apoio escolar, as actividades desportivas e um bairro mais limpo e com mais luz.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

I. Esperança, Memória e Narrativas



Este é um subsídio para um debate sobre o papel da cultura e tecnologias de informação na acção política. Serão abordados três grandes áreas: I. Esperança, Memória e Narrativas, II. Esperança e Espaço Público, III Esperança e Pluralidade em Acção. Neste primeiro exercício procuramos estabelecer uma base de reflexão sobre o papel da memória e seus suportes materiais, assim com da Arte, na criação das condições da promessa e da esperança.


Um sujeito ou uma comunidade sem memória não existe. O chamado património: arquivos, bibliotecas museus, património arquitectónico ou arqueológico, “fixa” essa memória. Sem apropriação, aqui e agora, esse património incumpre-se. Alguns passos se deram no sentido de digitalizar e tornar acessível o património português e o património das comunidades de lingua portuguesa. Muito falta fazer. Para fazer mais e melhor, é necessário que sejam constituidas algumas condições objectivas e subjectivas. É preciso superar a ideia passadista de que o curador de uma colecção é alguem que vela apenas pelo bom estado dessa mesma colecção- o curador como “dono” da colecção- para o ver como facilitador, como divulgador e como criador das suas condições de sustentabilidade, em suma como gestor. Em Portugal, Simoneta Luz Afonso foi, e é, a grande referência duma mudança de atitude face ao património, num momento histórico em que falar de economia e património museológico era ainda transgressor. Hoje, em que a cultura e economia convivem naturalmente e novos desafios de carácter politico de colocam à arte e cultura, permanecem nalguns sectores visões fechadas da gestão do património, nas quais não se promove activamente o acesso dos cidadãos à cultura, ou, em casos limite, se impede ou constrange esse acesso, até a investigadores.

Por outro lado vale a pena pensar a cultura como um elemento essencial da sociedade do conhecimento sendo, neste sentido, um elemento de competitividade e de desenvolvimento económico social. Considerando que o Estado é o principal curador do património é necessário pôr de pé modelos e práticas de colaboração publico-privado que cumpram virtuosamente os objectivos de apropriação do património por parte dos cidadãos num quadro de sustentabilidade.

Coloca-se o desafio de pensar Portugal na nossa pátria: – a língua portuguesa. A excelente série de documentários de Joaquim Furtado, "A Guerra", a passar na RTP é um exemplo luminoso disso. "A Guerra", sub-titulada, a Guerra Colonial, a Guerra de Libertação, a Guerra do Ultramar, não sei se por esta ordem, demonstra que a pluralidade de visões sobre um mesmo facto histórico tão radical como a guerra colonial pode unir, não porque ex-colonizadores e ex-colonizados possam ter a mesma visão, mas porque têm a coragem de falar e discutir sobre o que aconteceu, trazendo-o para espaço público. Joaquim Furtado usando os arquivos da RTP e os antigos serviços Cartográficos do Exercito, e procurando o depoiamento de pessoas que viveram a guerra, estabelece um ponto de partida extraordinário não só para o debate sobre a Guerra Colonial e de Libertação mas também sobre o dominio colonial Português à escala da Pátria de Fernando Pessoa e nossa, os que falamos a lingua portuguesa. Acresce que "A Guerra" de Joaquim Furtado olhado como produto de televisão é uma série que nos coloca ao nível do melhor que se faz no mundo e portanto terá um mercado, uma economia e uma sustentabilidade.

Existem muitas maneiras de abrir o património e a cultura aos cidadãos e óbviamente cada estratégia está dependente da natureza dos fundos, colecções e do público-alvo, sendo que em todos os casos as novas tecnologias de informação e comunicação desempenham, como instrumentos, um papel fundamental. Podemos conceber dois movimentos que se articulam: 1) aquele em que se digitaliza e cria uma base de dados de inventariação de acordo com principios ciêntificos de rigor e conhecimento especifico. Este é, naturalmente, um trabalho permanente e sem fim à vista, quer por via do alargamento da base de trabalho, quer pela evolução e mudança de metodos de análise e avaliação; 2) aquele que gera o processo de tornar acessível esses arquivos aos varios públicos-alvo e.g. investigadores, estudantes, cidadãos em geral através duma multiplicade de janelas disponíveis. Usando uma linguagem tecnocrática estamos no primeiro caso a falar de Bases de Dados e no segundo de Interfaces com Utilizador “lato sensu”.


A memória de uma comunidade sendo imaterial necessita de suportes materiais e precisa de uma narrativa sobre esses mesmos suportes materiais. Não basta tornar o património acessivel, é necessário que ele seja apropriado o que pressupõe não só um discurso mas sobretudo o debate que permita projectar o futuro dessa comunidade. É nesse movimento, entre o que o que fomos e o que poderemos ser que se forja a nossa identidade como dimensão plural e simbólica.
Os artistas, os criadores e os cientistas tiveram e têm na nossa sociedade um papel importantíssimo na criação de narrativas discernidas, visionárias e mobilizadores sobre o que se passa à nossa volta. Desde a antiguidade clássica que a cidadania é definida em termos políticos pelo que se diz e pelo que se faz entre os pares, o que pressupõe um registo uma narrativa sobre isso mesmo. A sobreinformação e a extrema mediação das sociedades contemporâneas colocam questões complexas “na escolha” das narrativas mobilizadoras e ao mesmo tempo “apagam” outras, que sendo potencialmente mobilizadores são abafadas pelo ruído. Os reptos colocados aos criadores são, como no passado “cantar” aqueles que "da lei da morte se vão libertando"? Pensamos que sim. Mas ao mesmo compete-lhes dar mundo a contextos muitas vezes marcados pelo deserto. Cientistas que decidem tornar inteligível ao grande público o que estão fazendo, dão mais mundo à nossa condição porque nos permitem fazer escolhas com mais informação. Criadores que a partir do seu lugar insólito “descobrem” novos percursos e significados para o nosso contexto, abrem novas dimensões da nossa cidadania e exigem de nós o exercicio da alteridade, muitas vezes de forma brutal. E nesse sentido a Arte e Ciência tenderão a ser cada vez mais políticas sendo a tecnologia, neste contexto, instrumental.


A Esperança exige que acreditemos nas nossas possibilidades no futuro. Para isso é necessário que saibamos quem somos e nos aceitemos como somos; ao mesmo tempo, sentindo por dentro a nossa circunstância sejamos capazes de agir sobre ela e prometer ao outro a forma dessa acção. A Memória é o ponto de partida dessa acção e a Arte pode ser o seu catalizador.


JCR
10/30/07

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A arte do contexto



Quando olho para o bairro, quando olho para as nossas crianças, para os nossos jovens procuro sempre perceber o que estamos a fazer.

A fecundidade da nossa acção e também a eficácia do nosso trabalho depende do rigor do diagnóstico. A miopia - ver bem unicamente as coisas que nos estão próximas - não nos ajuda a acertar no alvo. Circunscrever o diagnóstico ao bairro é um erro. Temos de olhar para a cidade, para a escola e procurar agir.

A escola deveria ser mais inclusiva do que é. O sistema de ensino e a organização que lhe está subjacente deveria estar de acordo com as necessidades especificas do seu público-alvo. Escolas em territórios habitados por imigrantes teriam de se adaptar às suas necessidades de integração e desenvolvimento e não o contrário. Muitas vezes os projectos como o nosso são vistos como uma maneira de ajustar as crianças e jovens a uma escola-tipo abstracta. No limite estes projectos são sítios para onde se mandam as crianças com as quais a escola não consegue lidar. Agir com as escolas para encontrar modelos e práticas mais inclusivas é seguramente uma das grandes tarefas do nosso projecto.

As oportunidades ao nível da educação, formação e das saidas profissionais dos jovens estão limitadas por um facto aparentemente menor. O nosso modelo de mobilidade urbana está baseado no automóvel e a nossa rede de transporte pública é pouco eficiente. No caso especifico do Prior Velho isso aplica-se por maioria de razão. O Junilto entra às 8.30 h na escola em Benfica sai de casa às 6:00 h da manhã correndo o risco de, se tudo correr bem, "ir para lá dormir" ou, se tudo correr mal, chegar atrasado! A "moda" actual de estar a tirar a carta de condução, quase todos os jovens maiores de 18 anos estão ou querem tirar a carta, reflecte isso mesmo.

Muitos dos hábitos de consumo dos jovens que são julgados duma maneira apressada uma inversão inexplicável de prioridades e.g. roupas de marca, "tecnoluxúria", etc. estão profundamente ligados a uma reacção a contextos exclusivos. Tirar a carta para, a seguir, ter um automóvel insere-se aí.

Quando olho para o bairro, quando olho para as nossas crianças, para os nossos jovens, emerge esta evidência de que as causas dos problemas não estão dentro mas fora do bairro.

"Uma mão lava a outra"




O movimento dos jovens da Quinta da Serra "grafitou" o À Bolina no nosso espaço . Assinou assim, aquilo que é cada vez mais um espaço público. Um espaço de acção.

O papel de José Maria da Veiga Semedo, o Zé Maria, na constituição deste espaço público é muito importante. Um dos primeiros jovens a arranjar emprego através da Univa, foi também um dos primeiros a assumir uma relação constitutiva com o projecto: "Uma mão lava a outra". Foram estas as suas palavras quando lhe pedi para apresentar a factura duns arranjos que tinha feito no projecto.

O Zé Maria é hoje, membro da equipa e não mudou em nada. O seu trabalho de renovação do espaço À Bolina (a propósito está fantástico pintado a cal, ocre amarelo e rosa marrakech) e o envolvimento na acção, a decorrer, de melhoramentos no campo de futebol são prova disso.

Mas, talvez, o mais importante é o exemplo que o Zé Maria dá, de jovem pai de família, de sólida base moral e respeitado entre todos. O Zé Maria é um homem de virtude. Que a fortuna lhe sorria.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O Deserto não está em nós



A ausência de mundo coloca-nos no deserto, mas o deserto não está em nós. A psicologia procura adaptar-nos ao deserto, retira-nos a faculdade de sofrer e a virtude de suportar. Suportando a paixão de sofrer no deserto criamos a coragem para agir, para nos transformarmos a nós próprios.

Os oásis não são lugares de descompressão mas fontes de vida, sem a dimensão de integridade dos oásis não saberiamos como respirar. Cito de memória "the promise of politics" de Hannah Arendt.

Recebemos no bairro 50 coordenadores de projectos escolhas , ontem terça feira 16 de Outubro para o Workshop de Mediação e Gestão de Conflitos.


A importância para o bairro do evento é indeterminável. A sensação, essa é a de um oásis. Não foi o projecto que acolheu o workshop, foi o bairro. Para quem está habituado ao bairro isso é intuitivo, mas podemos procurar evidências na maneira como muitas pessoas foram encaminhadas, no almoço, na curiosidade e alegria de muita gente.

O meu filho Francisco anda a estudar as baleias, e eu com ele. Fiquei a saber que as baleias tem duas formas de comunicação: as ondas curtas que permitem diálogos precisos entre seres e as ondas longas, que são usadas para enviar sinais e testemunhos de presença. A relação do bairro com os nossos companheiros dos outros projectos fez-se com ondas longas mas fez-se. Isso enche-nos de alegria.

domingo, 14 de outubro de 2007

Inclusão, Cidadania e Novas Tecnologias



Desenhos: Indira Moreira

O presente documento é a minha contribuição para um livro recém publicado pela Associação para a Promoção e o Desenvolvimento da Sociedade de Informação. O livro chama-se a "Sociedade da Informação - O Percurso Português", coordenado por José Dias Coelho e com prefácio de Jorge Sampaio e é uma colectânea de textos sobre a evolução da Sociedade de Informação em Portugal nos últimos 10 anos.


1.1 Preâmbulo

(1) O presente documento reflecte uma procura pessoal num território entre Cultura, Novas Tecnologias e Direitos Humanos e procura responder a três perguntas, a saber:

1. Qual é o papel que a cultura tem, ou pode ter, na criação de formações sociais mais inclusivas e mais Justas?
2. Qual o papel das tecnologias de informação e comunicação no contexto de 1.?
3. Que boas práticas?


1.2 Cultura

(2) Qual é o papel que a cultura tem ou pode ter na criação de formações sociais mais inclusivas e mais Justas?

(3) Em 2008 a Europa celebra o Ano do Diálogo Intercultural. Que significado tem este evento? Qual o seu contexto?

(4) Contexto 2008 Ano Europeu do Diálogo Intercultural – Do ponto de vista interno, o falhanço da aprovação da Constituição Europeia reflecte uma fragilidade ao nível da coesão e tem consequências sobre essa mesma coesão. No contexto planetário, os Tigres e Dragões Asiáticos, agora fora da jaula, e a politica unilateral dos Estados Unidos determinaram uma perda de massa crítica geo-estratégica da Europa. Numa entrevista recente ao diário espanhol “El Pais”, o ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso lamentava que a Europa, dados os valores que representa, não tivesse maior intervenção. “2008 Ano Europeu do Diálogo Intercultural” propõe-se exactamente intervir ao nível dos valores.

(5) Que valores? Que práticas? Quem? – Desenvolver em conjunto políticas de prosperidade, solidariedade, coesão social e segurança. Usar o diálogo intercultural como uma oportunidade. A Cultura, as instituições e os agentes culturais com uma aproximação mais política, mais interventora e mais comprometida. Apoiar a mudança económica e social (agenda de Lisboa).

(6) Limites da Intervenção- Ao definir um Ano Europeu do Diálogo Inter-cultural centrado na Europa e não no Mundo, retirando aos Estados Membros o carácter cosmopolita e, porque não assumi-lo, pós-colonial, ao escamotear o papel das linguas como geradoras de comunidades planetárias poder-se-á estar a deitar fora o bébé com a água do banho?

(7) Diálogo Intercultural – O diálogo intercultural é uma necessidade das sociedades culturalmente diversas. Com o agravamento dos desiquilíbrios de desenvolvimento ao nível mundial, nomeadamente com a situação cada vez mais grave da África subsariana, a pressão migratória sobre a Europa é cada vez maior. Não cabe neste trabalho avaliar as suas consequências em toda a dimensão mas importa destacar que esta pressão cruza com a escalada de conflitos extremistas de inspiração religiosa e uma pressão dos EUA sobre o mundo para impor os seus métodos de combate ao chamado “terrorismo”. Dentro da Europa a existência de grandes comunidades geradas à volta de identidades étnicas e religiosas associada à reinvidicação do “direito à diferença” gerou e gera grandes tensões aproveitadas muitas vezes duma maneira populista e por grupos políticos de extrema-direita. Isto levou à necessidade de redefinir a própria noção de “direito à diferença” confrontado-a com outros direitos fundamentais e.g. direitos humanos e conjugando-a com a noção de cidadania.

(8) Diálogo Intercultural e Cidadania – A Holanda tem em fase final a definição do canône de Identidade Holandesa. O que é que isto significa num país com uma forte tradição de tolerância e de diálogo inter-cultural e onde ao mesmo tempo a extrema-direita parece ter cada vez maior peso-politico? Provavelmente a Holanda terá atingido o limite da capacidade de gerir a diferença no quadro social actual. Definir o Canône Holandês é um movimento arriscado que, para muitos, cheira a Nazismo mas que, para outros, é uma necessidade de modo a que a cidadania Holandesa se exprima sob a forma de direitos mas também de deveres e que o direito à diferença seja exercido no quadro dessa mesma cidadania e não fora dela.

(9) Diálogo Intercultural e Identidade – Vimos como o “direito à diferença” tem de ser confrontado com os outros direitos das sociedades democráticas. Da mesma maneira o “direito à cidade” implica uma constante negociação de espaços partilhados – físicos ou virtuais. A noção de Multiculturalismo cedeu lugar à de Interculturalismo. A cultura-estática deu lugar à noção de cultura-dinâmica; sentido de pertença evoluiu para um compromisso de cidania; identidade baseada em etnia, raça ou religião assume progressivamente a forma de identidades múltiplas.

(10) Papel da Cultura – Cultura e Diversidade Cultural são consideradas elementos motores do desenvolvimento sócio-económico das corporações e cidades das sociedades contemporâneas. É dado assumido no mundo empresarial que a inovação e a competitividade estão assentes em estruturas capazes de integrar uma diversidade de ponto de vista e culturas em tensão que se resolvem em produtos e serviços mais competitivos. O mesmo raciocínio tem vindo a ser aplicado à gestão das cidades. O mesmo princípio aplicado aos Estados permite olhar para a diversidade cultural não como uma ameaça mas sim como uma oportunidade. A linha divisória é traçada pelo diálogo intercultural. Diversidade Cultural sem Diálogo Inter-cultural tem a entropia típica dos sistemas fechados.

(11) Papel dos agentes Culturais

Nos Balcãs muitos artistas dedicaram-se ao enorme desafio de transformar o inimigo em parceiro. E a pungência do drama vivido criou possivelmente uma das mais exaltantes experiências humanas de negociação de espaços comuns e de diálogo intercultural através das artes. O “coração da matéria” é um livro da Fundação Cultural Europeia (www.eurocult.org ) que descreve o papel das artes e da cultura na integração europeia dos Balcãs e demonstra que a mudança tinha que começar na cabeça das pessoas e para isso era necessário mudar percepções, imagens e padrões culturais.





1.3 Tecnologias de Informação e Comunicação

(12) Qual o papel que as tecnologias de informação e comunicação têm neste contexto?

(13) As tecnologias de informação e comunicação vieram acrescentar novas formas de exclusão aos contextos de exclusão, alargando e aprofundando as clivagens existentes entre os “que têm” e os “que não têm”. É também verdade que, utilizadas de maneira adequada, as TIC podem ser um instrumento de combate à exclusão. Estes pressupostos levam-nos a rejeitar, antes do mais, uma visão mecanicista de demonização das TIC ou pelo contrário da sua exaltação como panaceia geral.

(14) Para compreender melhor o papel das TIC é necessário tentar entender um mundo em mudança. Para compreender o mundo em mudança é preciso antes do mais libertarmo-nos dos instrumentos conceptuais de análise do real herdados do cartesianismo. Nos últimos anos muitas vezes nos perguntámos: “o mundo vai para onde? Como vai ser o nosso futuro próximo?”. Tentámos identificar tendências e determinar os principais actores. Quase sempre falhámos e acertámos simultâneamente. Porquê? Porque o mundo vai para “todos os lados”. Como falhamos e acertamos ao mesmo tempo, não erramos nem acertamos, isto é, as nossas ferramentas têm de ser substituídas.

(15) A Internet é um bom exemplo do que dissemos. A Internet 1.0 - podemos chamar-lhe assim agora que já existe a 2.0 - trouxe para muitos de nós a utopia de uma sociedade mais justa, baseada no indivíduo capacitado pelas tecnologias e em rede. Numa versão mais radical eraa persona cibernética e mutante, que anunciava o fim da cultura e da sociedade de massas, a emergência do papel do indivíduo simultânemente produtor e consumidor em rede, em comunidade, que tornaria caduca qualquer forma de difusão massificada. Desta maneira, os monopólios e as grandes corporações implodiriam sob o efeito do seu próprio peso e património histórico-cultural. Novas formas de viver e trabalhar eclodiriam por todo o mundo e o capital financeiro antes concentrado em muito poucos, acudiria a esta nova realidade globalizando-a planetariamente. Tal era a utopia da Internet 1.0. Não se pode dizer que tenha acontecido, também não se pode dizer que não o tenha…

(16) O que podemos aprender é que, sem uma visão holística e sem uma praxis, as “coisas passam-nos ao lado”. Existem valores seguros como a ideia de rede. Não porque o conceito seja rico em si mas porque é aberto, plástico, que abre para outros. Existe latente a ideia de que o “ser” - não o consumidor ou até o consumidor/produtor do “Peer to Peer” - mas o “ser” como persona, com o seu livre arbítrio, marca o princípio e fim de qualquer périplo na actividade humana. Neste sentido, todas as aproximações “científicas” ficam contaminadas pelos infinitos factores que levem um ser humano a dizer sim ou não a algo. Aquilo que os analistas financeiros chamam “confiança dos investidores” pode funcionar como ilustração.

(17) Reconduzindo a questão do papel das TIC como instrumentos de inclusão, gostariamos de alinhar algumas conclusões que são uma espécie de sugestão para os agentes de mudança.



1.4 Boas Práticas

(18) Contribuições para as boas práticas

1. Para combater a exclusão é necessário estar com o “ser” excluído, sendo cada caso um caso.
2. Cada ser excluído pode ser capacitado pelas novas tecnologias para ampliar o seu espaço de cidadania através de “rede”.
3. Sendo as exclusões um produto de contextos abaixo do limiar vital de cidadania, é necessário, nesses casos, intervir globalmente, mudando o contexto.
4. A mudança de contexto está muitas vezes ligada à criação de condições básicas, e humanamente dignas, de subsistência: habitação, saúde, educação,etc.. Muitas vezes o combate à exclusão começa por ser um combate à pobreza.
5. A tentação de combater a exclusão seguindo a hierarquia de necessidades, começando pela alimentação, depois o abrigo, depois a educação, etc. - e onde as TIC estão algures nas camadas de cima - é um beco sem saída. A intervenção tem de ser feita a todos os níveis em simultâneo, reconhecendo a interacção entre eles e procurando sinergias.
6. As tecnologias de informação e comunicação podem ser catalizador dessas sinergias, na medida em que podem ligar os níveis de intervenção, ligar dentro dos territórios de exclusão e ligar estes com o exterior, dando-lhes visibilidade, faces e personalidade.
7. A sustentabilidade dos processos de inclusão passa sempre pelo grau de penetração que as acções de inclusão tiveram, têm, terão na comunidade ou rede a que se destinam, sendo essa comunidade constituída por cidadãos concretos, diferenciados e em livre arbítrio. Rejeitando os processos “cegos” em que se despejam recursos em territórios de exclusão com efeitos quase sempre perversos, poderemos ver os efeitos de intervenções que sem paternalismo e com respeito sirvam, de modo continuado no tempo, a inclusão para a cidadania.



1.5 Conclusão

(19) É preciso desmistificar a natureza dos territórios de exclusão. Para tanto é necessário combater a ideia de que o social e economicamente “útil” é determinado pela proximidade relativamente à média, ao cânone, sendo as margens condenadas à inutilidade e à dependência perpétua. Procurámos dizer que as margens, satisfeitas determinadas “condições de temperatura e humidade”, contêm elementos essenciais de inovação e progresso nas sociedades contemporâneas, sendo o diálogo intercultural e o combate à exclusão e, instrumentalmente, as novas tecnologias de informação e comunicação, seus viáticos.

12/11/06



© 2007 APDSI. Esta é a versão do autor do Trabalho, aqui disponibilizada por autorização
da APDSI, e destina-se a uso pessoal não podendo ser reproduzida nem distribuída a
terceiros, salvo os casos previstos na Lei.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

And Gods may be with Burmese Monks!!!



O titulo e a imagem são retiradas do blog do meu filho Pedro.

Que condição faz que monges troquem a eternidade pela imortalidade? a vida contemplativa pela vida activa?

A contemplação pressupõe uma procura do eterno ou uma fusão com o que não se nomeia. Nesta busca, toda a actividade, mesmo a do pensamento, ou devo dizer sobretudo a do pensamento (?), são um escolho uma barreira que se coloca entre o nosso ser físico e o nosso ser etéreo e entre este e o não-ser.
A vida activa pressupõe estar entre os homens. Nós portugueses, como os romanos, continuamos a dizer quando alguém morre: "Já não está entre nós". Arendt sintetisa isto duma maneira luminosa quando assume que a condição humana da acção é a pluralidade e a acção funda corpos políticos. Na tradição clássica greco-romana pelas palavras/diálogo e feitos/acção se podiam tornar os homens imortais pressupondo a existência duma narrativa e duma memória dessas mesmas palavras e feitos como condição da própria polis.

A pergunta que fazemos no inicio é ela própria questionável. Nada nos indica que os monges budistas birmaneses tenham abandonado a vida contemplativa sabemos é, seguramente, que abraçaram a vida activa e a politica naquilo que esta tem de mais luminoso. Não sabemos se superaram a aparente contradição entre vida activa e contemplativa mas quando olho a fotografia e os vejo protegidos por um cordão de pessoas, quando nos filmes que nos chegam de Burma vejo as pessoas ajoelhando à sua saida dos autocarros não consigo deixar de me emocionar com o sagrado e com a política. É muito cedo para avaliar os resultados dos acontecimentos e os seus impactos e leituras políticas dentro e fora de Burma. Falamos do processo, e esse é exemplar para todas as comunidades religiosas do mundo, para todos os cidadãos do mundo.

May Gods be with Burmese Monks!

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Hannah Arendt - A vida



"Gurs, une drôle de syllabe,
comme un sanglot
qui ne sort pas de la gorge.''


Louis Aragon


quarta-feira, 3 de outubro de 2007

A Violência e o recuo do espaço público



O poder em Arendt é sempre o resultado da acção assente na concertação e na pluralidade de actores em oposição à Força como uma propriedade individual ou natural e à Violência que é coerciva. No sentido de Arendt, o poder não só não precisa de ser legitimado como é a fonte de toda a legitimidade das instituições políticas. Vimos atrás que no campo de estudo que escolhemos, a violência é muitas vezes o resultado de uma condenação ao silêncio. Falamos agora da violência como resultado de um vazio gerado pelo recuo do espaço público ou sua inexistência. Quando desaparece o espaço público, o sujeito atinge o seu máximo de fragilidade e emerge o medo. Por outro lado os mecanismos de coesão comunitária tomados por dentro, pela ausência de polis, fazem emergir um código de conduta que protege os actores de comportamentos violentos existindo, no limite, uma narrativa que faz a sua exaltação. Do ponto de vista da acção importa saber como intervir sem quebrar os vínculos à comunidade? Como intervir sem aprofundar clivagens intra-comunitárias existentes que tipicamente procura os culpados entre os mais jovens? Como intervir sem ser contributivo para a narrativa espectacular dos gangs e guetos? Como intervir ao nível individual sem paternalizar nem excluir? Como intervir no curto prazo em termos de dinâmicas comunitárias contra a violência?

Promessa e Perdão versus Planeamento e Avaliação



O que distingue, segundo Arendt, os homem dos outros seres é a sua capacidade de ordenar o passado através do perdão e de ordenar o futuro através da promessa. Vimos que os processos começados pela acção não podem ser controlados nem revertidos e os seus resultados são imprevisiveis. Esta natureza da acção, cria uma inquietação que em Arendt longe de encontrar conforto no refúgio da vida contemplativa enaltece duas categorias: o perdão e a promessa. O perdão mitigando a irreversibilidade da acção, absolvendo o actor de consequêncais das suas palavras ou actos; a promessa caldeando a imprevisibilidade dos resultados através dos laços estabelecidos entre iguais . Sem ser perdoados ficariamos para sempre vitimas das consequências dos nossos actos. Sem estar ligados por promessas jamais conseguiriamos manter as nossas identidades e estariamos condenados a errar sem direcção na completa escuridão. Ambas as faculdades dependem assim da pluralidade da interacção e da presença do outro. Vimos que a construção das identidades colectivas passa, em Arendt pelo discurso e acção politicas e um processo continuo de negociação do espaço público. Duas pistas de estudo emergem daqui. A primeira refere-se aos facto dos projectos de intervenção no âmbito do Programa Escolhas estarem naturalmente baseados em objectivos. Em que condições podem esses objectivos ser considerados promessas? Que mudanças ocorrem no estado dos projectos quando isso acontece? A segunda vertente de estudo refere-se ao modus de avaliação do cumprimento de objectivos / promessas em espaço público? Quais os limites práticos de inimputabilidade do sujeito? Que leitura podemos fazer dos modelos de planeamento e avaliação participativa à luz destes conceitos?

Acção em rede e capacitação versus instrumentalizações



A liberdade em Arendt é indissociável da inovação e da acção: de fazer o totalmente inesperado. O pluralismo, o confronto com o “outro” uma forma de validação do exercicio de liberdade, entendida esta esta na sua dimensão pessoal e única, a Polis o espaço dessa validação. Desta maneira a acção é uma manifestação de liberdade numa rede plural. Cada actor entra em relação com uma intrincada rede de acções e eventos que não podem ser controlados por ninguém em particular e cujos resultados são imprevisiveis e irreversíveis. Agindo, todos somos capazes de começar processos mas ninguém tem a capacidade de controlar as consequências dos seu actos. Arendt alerta também para o facto de cada acto determinar uma série de acções e reacções que não têm fim. No campo de acção que escolhemos, o confronto com o outro começa por ter uma barreira ao nível da palavra, das competências associadas à lingua, mais grave que a condenação ao silêncio pelo outro é a condenação de si próprio ao silêncio. No silêncio os conflitos resolvem-se em violência interna ou externa (lá iremos). Sem palavra não existe diálogo, sem diálogo não existem promessas, nem acção, nem poder e o espaço público reduz-se a um conjunto vazio. Muitas vezes, na acção, temos essa sensação de estar a negociar esse conjunto vazio. Interessa-nos investigar quais os contextos catalizadores da emergência de redes? Onde intervir de maneira a criar as sementes da mudança acreditando como Arendt que um pequeno acto e por vezes uma palavra são suficientes para mudar todas as constelações? Sabemos que as intervenções focadas na eficácia da afectação recursos geram relações instrumentais de dependência mas será a acção em rede, concentrada no processo e na fertilidade, ineficaz à luz dos padrões de avaliação de projectos? Como compatibilizar eficácia e fertilidade? Finalmente como transformar o “pluralismo excluido” em “pluralismo inovador”, ou seja escancarar o espaço público à alteridade existente nos territórios de exclusão e qual o papel das narrativas, de que falámos, nesse contexto?

Espaço Público e Visibilidade versus Identidades de resistência



A Polis, em Arendt, não é o espaço fisico da cidade mas sim a organização dos cidadãos livres e iguais e é gerada pela acção e pelo diálogo partilhados, um verdadeiro espaço entre pessoas que decidiram viver em conjunto não importando onde estão fisicamente. Este conceito de Polis adquire um significado ampliado no quadro do papel cada vez mais relevante que a Internet tem na vida dos cidadãos. Se qualquer exercicio de cidadania, se qualquer construção de identidade colectiva começa na existência de um espaço de visibilidade, se por outro lado é precisamente o diálogo e acções comuns que gera o poder que alimenta esse espaço público, então importa saber, no caso das comunidades em risco de exclusão, onde e como intervir para quebrar o circulo vicioso das identidades de resistência baseadas na raça, etnia ou religião, da perda de mundo e da ausência de luz.

O papel das narrativas e da memória versus diagnóstico exógeno



Confrontadas com a perda de memória as comunidades imigrantes perdem liberdade de agir. São possíveis duas pistas de acção que se complementam, uma de inventariação e fixação das memórias através das histórias dos sujeitos e das comunidades (a este propósito vidé o inventário de histórias que estamos fazendo no À Bolina). Outra a da narrativa das palavras e actos relevantes. Uma como outra são uma resistência à erosão do tempo uma fonte de inspiração para acções futuras, sendo esta uma das funções da Polis como espaço público. Ao mesmo tempo são o processo segundo o qual se revela a identidade do actor a qual só se efectiva plenamente à posteriori, a partir da narrativa socialmente aceite sobre o actor e a sua individualidade. Contar a história dá significação à acção quer para os actores quer para os espectadores. A construçao da memória e das narrativas assume-se como um processo endógeno que sustenta a acção em oposição ao diagnóstico como processo exógeno que sustenta, quase sempre, vínculos e relações instrumentais em intervenções deste tipo. De que maneira é que a criação de arquivos digitais, universalmente acessíveis, amplifica estas acções?

Hannah Arendt II

Hannah Arendt I

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Mundo e Cidadania
















Voltamos ao papel da mulher como charneira entre o mundo e a terra, as raizes . Ocupa-a a resolução desse conflito no quotidiano nos pequenos grandes gestos. Uma leitura possível parte da maneira como educam os filhos. É uma leitura que podemos fazer através das crianças, das rotinas mas também dos comportamentos em crise.
Um lugar comum das reclamações das mães é estarem inseridas num contexto que não permite que os filhos sejam castigados fisicamente. A degradação moral dos filhos e a incapacidade de os fazer respeitar as regras teria origem aí. Não discutimos o principio mas a reclamação i.e. a ideia de inserção no mundo como uma espécie de menu donde retiro instrumentalmente as coisas que mais me convêm. No outro extremo temos a resolução virtuosa da contradição. A metáfora da árvore que enraiza à medida que cresce para o mundo dá-nos uma imagem por defeito da quantidade de oportunidades que no mundo globalizado se abrem à diferença. Trabalhar com as mães na valorização dos elementos de identidade diferenciadores gera auto-estima e desta maneira resiliência em contextos adversos e cidadania activa em contextos virtuosos.
O nosso trabalho aqui é com as mães, com as tais familias monoparentais e destruturadas. Com as mães que deixam a casa antes dos filhos irem para a escola ou chegam a casa muito depois das horas a que as crianças se deviam deitar porque trabalham nas limpezas em pré ou pós horário laboral. Com as mães que deixam os filhos de 13 anos no bairro a tratar de irmãos de 4 ou 5 e vagamente entregues a uma “tia” para ir acudir a doença ou morte de parente na terra de origem.

Fraternidade e Comunidade














A segunda reflexão começa onde a primeira termina. Vimos como o papel da mulher ligando o mundo e as origens a torna central na resolução de um conflito entre espaços, tempos e naturalmente, culturas distintas. A resolução dialéctica dessa contradição produz mundo e cidadania mas a verdade é que o contexto tende muitas vezes a reproduzir ampliadamente as condições de partida. Que condições são essas?
Voltemos à tabanka- à tabanka guineense- a tabanca como aldeia, como aldeia fortificada que se protege do exterior, gera dentro de si uma comunidade ou uma fraternidade? Deixamos a pergunta sem resposta. O que nos importa responder é se transposto para um novo espaço – neste caso o território da Quinta da Serra – os memes culturais que geram a tabanka produzem uma fraternidade ou uma comunidade?
Paramos um pouco para esclarecer conceitos. Fraternidade entende-se aqui como uma forma de organização dos oprimidos, dos humilhados, daqueles que privados de luz procuram o calor e a solidariedade dos seus pares. Mas mais que uma forma de organização podemos identificá-la como um processo segundo o qual os perseguidos ou marginalizados vão cerrando fileiras até não existir mundo entre eles. E a ausência de mundo - como dizia Arendt- “é, infelizmente, sempre uma forma de barbárie”.
Neste sentido a fraternidade não sobrevive à libertação e à luz.
Conseguimos identificar no Bairro da Quinta da Serra muitos elementos de fraternidade. Muitas vezes nos deixàmos embalar pela ideia de sermos aceites por essa fraternidade como um privilégio de “eu e tu contra a mundo”. Como não podia deixar de ser nunca fomos aceites mas se o tivessemos sido passariamos a parte do problema e não da solução. Continuando com Arendt: “Um tal privilégio paga-se caro, muitas vezes acompanha uma perda de mundo tão radical, uma atrofia tão terrível de todos os orgãos com que a ele reagimos- a começar pelo senso comum…e passando pelo sentido da beleza, ou gosto, com que amamos o mundo- que nos casos mais extremos…podemos falar de uma verdadeira ausência de mundo”.
Ora precisamente o nosso papel na Quinta da Serra é trabalhar com a comunidade para abrir ao mundo. Para dar luz e não o contrário.
Interessa-nos a acção, acção implica escolhas e escolhas bebem pensamos nós, da base moral que vamos construindo articulada com as possibilidades geradas no contexto. Todas estas categorias interagem. Fazer parte da fraternidade não é uma possibilidade. Não o seriamos mesmo que passássemos a viver no bairro partilhando integralmente o dia a dia dos seus habitantes. Mas o que queremos dizer é que mesmo que isso fosse uma possibilidade ela condenaria o projecto na sua essência. A solução está na alteridade. Assumir a alteridade num contexto de uma comunidade orgânica, aberta ao mundo e inteligente.

Do Diagnóstico













Trabalhar em conjunto é uma viagem em conjunto. Comecemos por Macbeth com a sua recomendação de desempenho em tempo, espaço e medida que sintetiza admirávelmente muitas páginas de manuais de planeamento. O plano/promessa forma de ordenar o futuro começa na estação do diagnóstico. O primeiro diagnóstico é exógeno i.e. sustenta a promessa. No nosso caso o diagnóstico usado foi o da rede social. Os diagnósticos deste tipo de territórios têm em comum o jargão sinóptico das chamadas ciências sociais e dão-nos uma visão generalista que alimenta bem a justificação para a intervenção. Pouco a pouco esse diagnóstico foi-se endogeneizando. Digamos que o projecto se apropriou do diagnóstico na justa medida que a comunidade se apropriou do projecto. Dum diagnóstico estático, externo e abstracto passámos progressivamente a um diagnóstico dinâmico, orgânico e centrado no sujeito. Em projecção, arriscamos a dizer, um diagnóstico que tende a confundir-se e a desaparecer na acção da mesma maneira que a água alimenta a terra sedenta. Um diagnóstico que se realiza plenamente quando deixa de existir como categoria independente . Ao mesmo tempo importa voltar à estação de partida, animados pelo sentir actual do projecto e fazer uma análise critica do nosso diagnóstico inicial.


Uma primeira reflexão sugere que os preconceitos embalados no instrumental das ciências sociais não deixam de ser preconceitos e tornam-se mais perigosos devido à sua legitimação ciêntifica. Muitos dos problemas diagnosticados relevam duma visão etnocentrada, culturalmente autista, da realidade do bairro. A ideia de destruturação familiar pressupõe o canône da estrutura familiar “normal”. Na Guiné por exemplo cada individuo tem uma referência à familia, à tabanka e à etnia, não necessáriamente por esta ordem, as crianças brincam ou desempenham tarefas para a comunidade tendo os adultos da tabanca, familiares ou não, a função de ordenar essas actividades. Por outro lado, em muitos casos, um homem tem mais que uma mulher competindo a cada uma das suas mulheres criar os respectivos filhos. Esta lógica, da tabanka, permanece na realidade do bairro, a ela se juntou a necessidade de reagir às próprias condições da diáspora em que Portugal é muitas vezes uma plataforma de imigração na Europa para os homens mas onde as mulheres permanecem como que a ligar o mundo (dos homens) e as suas origens (os que ficaram). Nas situações de crise económica que vivemos muitas vezes os homens procuram trabalho fora de Portugal. Quando os jovens “descarrilam” as mães muitas vezes obrigam-nos a ir para a terra. Desta maneira a familia cruza uma busca de economia e uma procura de raizes num movimento que é muitas vezes dilacerante. Essas familias dispensam o rótulo de destruturadas não porque não o sejam mas porque o adjectivo as estigmatiza e as reduz, resultando no contrário às intenções que animam os diagnósticos.

Descer juntos

No À Bolina apesar da juventude do projecto passamos por momentos de grande desolação quando no dia 6 de Março de 2007 nos foram roubados todos os computadores do CID-NET. Mas em 11 de Março na reunião da população deu-se um salto qualitativo na nossa relação com comunidade. Deixámos de poder dar o que tinhamos prometido. O projecto ficou mais pobre. E a pergunta que fizemos foi se nos queriam, assim pobres? A resposta, emocionada, desassombrada e avassaladora foi: Sim! A nossa relação constitutiva com a comunidade começa aí. Deixámos de “estar para” para “estar com”.
Em muitas opções “estar com” exige uma progressiva identificação com a comunidade. A língua, a cultura, a maneira de viver, a pobreza. Não questionamos essas opções. Mas gostariamos de valorizar a via da diversidade. A das relações constitutivas entre pessoas diferentes. Perde-se, talvez, em eficácia , ganha-se em fertilidade. As pessoas do projecto introduzem diversidade no eco-sistema económico e sócio-cultural do bairro. A diversidade assente em relações não-instrumentais e constitutivas gera fertilidade e capacitação. A mudança de estado dá-se quando os meninos e meninas do bairro deixam de ver as “brancas” para ver a Catarrina ou a Anja e a seguir lhes escrevem cartas de amor e lhes trazem flores.

Queremos estar conscientes que vamos ter muitos mais momentos de desolação na nossa acção. Se soubermos descer juntos, reforçando relações, sem medo de bater no fundo vai ser fácil subir para a luz.

Chamar o outro pelo seu nome



No principio, animados de boas intenções, a capacitação aparecia como algo que estavamos ali para oferecer através duma acção que procurava a eficácia. De alguma maneira tratava-se de um exercicio empresarial éticamente conduzido. Identificar bem os nossos clientes e as suas necessidades, definir o mix de produtos capaz de as satisfazer, planear e controlar, dirigir e organizar os recursos de modo a procurar uma eficiência e eficácia que deixasse todos satisfeitos: O nosso público-alvo, o programa Escolhas, o Consórcio do Projecto e a equipa.

A eficácia gera coisas, a fertilidade gera seres. Concentrados na eficácia da afectação de recursos vimo-nos conduzidos a relações instrumentais e até de paternalismo/dependência, possívelmente o erro mais grosseiro de intervenções deste tipo. Com objectivos quantitativos e qualitativos para cumprir o caminho mais fácil é fazer o exercício já sabendo a resposta ou seja submetendo os meios aos objectivos e o processo ao resultado. Ora a nossa experiência ensina-nos justamente o contrário: o processo define o resultado. A fertilidade emerge de relações constitutivas. Relações entre pessoas que decidem trabalhar em conjunto. Dessas relações brota um poder especifíco uma capacitação que é apropriada de diferentes maneiras e em livre arbítrio por cada uma das “personas” intervenientes. Neste sentido a capacitação não se oferece, produz-se na relação e não é de só uma das partes mas de todos os sujeitos da relação.

A primeira reunião, em Abril, com a comissão de pais é um exemplo luminoso desta capacitação mútua , dos Pais e da Equipa, gerada por uma relação constitutiva voltada para a melhoria do desempenho escolar.

Um relação constitutiva, uma relação fértil, pressupõe que designemos o outro pelo nome. O abandono da abstração dos numeros e das generalidades qualitativas assumindo o primórdio do sujeito. A revelação acontece a seguir. O sujeito, o substantivo tem muitos adjectivos. Cada pessoa é uma multiplicidade de identidades. Uma relação fértil parte da identificação daquilo que realmente nós somos e daquilo que realmente o outro é. Não daquilo que gostariamos que o outro fosse. Mas assume a possibilidade de mudança, a possibilidade de transcendência a partir do poder gerado no próprio seio da relação. Tal é a natureza da nossa Utopia.

Conhece-te a ti mesmo

Quando chegámos à Quinta da Serra – um bairro de barracas no Prior Velho habitado sobretudo por Cabo-Verdianos e Guineenses- tratava-se antes do mais de fazer o reconhecimento do território: Das condições concretas em que viviam pessoas concretas. Esse reconhecimento seria a base para estabelecer a oferta do projecto e essa oferta seria o instrumento da capacitação das pessoas e portanto da promoção da inclusão social.

Com o passar do tempo fomos constatando que esse programa continha uma grave omissão: Nós. Ou seja a necessidade da equipa efectuar, na acção, um processo de auto-conhecimento obstinadamente rigoroso. Ou seja, assumindo aquilo que cada um dos seus membros e a equipa como um todo, efectivamente é e não aquilo que gostariamos que fosse. A acção tem-nos fornecido um surpreendente mapa de nós próprios.

Esse processo de auto-conhecimento, forjado na acção é, creio, o ponto de partida do primeiro tempo de capacitação da equipa. Nesse processo dá-se uma espécie de homeostase entre o interior (nós) e o exterior (o território). Nessa homeostase aprendemos que defeitos e virtudes essenciais são categorias plásticas e que o exercicio de tomada de decisões é centrado na procura de contextos virtuosos. Dito doutra forma, um mesmo traço de caracter pode ser defeito ou virtude em função do contexto e o contexto é uma emanação da base moral e como tal, duma procura interior “cá fora”.

Este é o ponto de partida, de chegada e de novo de partida e de novo de chegada em muitos ciclos em que procuramos reconhecer uma tendência ascendente.

Quinta da Serra - Pensar no Agir I


Preâmbulo

Hannah Arendt dizia que o que distinguia os homem dos outros seres era a sua capacidade de ordenadar o passado através do perdão e de ordenar o futuro através da promessa.

Pensar no Agir é uma promessa de reflexão sobre a acção do projecto À Bolina no território da Quinta da Serra que não tem a pretensão de ser generalizavel . É apenas aquilo que é, uma reflexão à volta de uma prática para melhor a ordenar.