terça-feira, 30 de outubro de 2007

I. Esperança, Memória e Narrativas



Este é um subsídio para um debate sobre o papel da cultura e tecnologias de informação na acção política. Serão abordados três grandes áreas: I. Esperança, Memória e Narrativas, II. Esperança e Espaço Público, III Esperança e Pluralidade em Acção. Neste primeiro exercício procuramos estabelecer uma base de reflexão sobre o papel da memória e seus suportes materiais, assim com da Arte, na criação das condições da promessa e da esperança.


Um sujeito ou uma comunidade sem memória não existe. O chamado património: arquivos, bibliotecas museus, património arquitectónico ou arqueológico, “fixa” essa memória. Sem apropriação, aqui e agora, esse património incumpre-se. Alguns passos se deram no sentido de digitalizar e tornar acessível o património português e o património das comunidades de lingua portuguesa. Muito falta fazer. Para fazer mais e melhor, é necessário que sejam constituidas algumas condições objectivas e subjectivas. É preciso superar a ideia passadista de que o curador de uma colecção é alguem que vela apenas pelo bom estado dessa mesma colecção- o curador como “dono” da colecção- para o ver como facilitador, como divulgador e como criador das suas condições de sustentabilidade, em suma como gestor. Em Portugal, Simoneta Luz Afonso foi, e é, a grande referência duma mudança de atitude face ao património, num momento histórico em que falar de economia e património museológico era ainda transgressor. Hoje, em que a cultura e economia convivem naturalmente e novos desafios de carácter politico de colocam à arte e cultura, permanecem nalguns sectores visões fechadas da gestão do património, nas quais não se promove activamente o acesso dos cidadãos à cultura, ou, em casos limite, se impede ou constrange esse acesso, até a investigadores.

Por outro lado vale a pena pensar a cultura como um elemento essencial da sociedade do conhecimento sendo, neste sentido, um elemento de competitividade e de desenvolvimento económico social. Considerando que o Estado é o principal curador do património é necessário pôr de pé modelos e práticas de colaboração publico-privado que cumpram virtuosamente os objectivos de apropriação do património por parte dos cidadãos num quadro de sustentabilidade.

Coloca-se o desafio de pensar Portugal na nossa pátria: – a língua portuguesa. A excelente série de documentários de Joaquim Furtado, "A Guerra", a passar na RTP é um exemplo luminoso disso. "A Guerra", sub-titulada, a Guerra Colonial, a Guerra de Libertação, a Guerra do Ultramar, não sei se por esta ordem, demonstra que a pluralidade de visões sobre um mesmo facto histórico tão radical como a guerra colonial pode unir, não porque ex-colonizadores e ex-colonizados possam ter a mesma visão, mas porque têm a coragem de falar e discutir sobre o que aconteceu, trazendo-o para espaço público. Joaquim Furtado usando os arquivos da RTP e os antigos serviços Cartográficos do Exercito, e procurando o depoiamento de pessoas que viveram a guerra, estabelece um ponto de partida extraordinário não só para o debate sobre a Guerra Colonial e de Libertação mas também sobre o dominio colonial Português à escala da Pátria de Fernando Pessoa e nossa, os que falamos a lingua portuguesa. Acresce que "A Guerra" de Joaquim Furtado olhado como produto de televisão é uma série que nos coloca ao nível do melhor que se faz no mundo e portanto terá um mercado, uma economia e uma sustentabilidade.

Existem muitas maneiras de abrir o património e a cultura aos cidadãos e óbviamente cada estratégia está dependente da natureza dos fundos, colecções e do público-alvo, sendo que em todos os casos as novas tecnologias de informação e comunicação desempenham, como instrumentos, um papel fundamental. Podemos conceber dois movimentos que se articulam: 1) aquele em que se digitaliza e cria uma base de dados de inventariação de acordo com principios ciêntificos de rigor e conhecimento especifico. Este é, naturalmente, um trabalho permanente e sem fim à vista, quer por via do alargamento da base de trabalho, quer pela evolução e mudança de metodos de análise e avaliação; 2) aquele que gera o processo de tornar acessível esses arquivos aos varios públicos-alvo e.g. investigadores, estudantes, cidadãos em geral através duma multiplicade de janelas disponíveis. Usando uma linguagem tecnocrática estamos no primeiro caso a falar de Bases de Dados e no segundo de Interfaces com Utilizador “lato sensu”.


A memória de uma comunidade sendo imaterial necessita de suportes materiais e precisa de uma narrativa sobre esses mesmos suportes materiais. Não basta tornar o património acessivel, é necessário que ele seja apropriado o que pressupõe não só um discurso mas sobretudo o debate que permita projectar o futuro dessa comunidade. É nesse movimento, entre o que o que fomos e o que poderemos ser que se forja a nossa identidade como dimensão plural e simbólica.
Os artistas, os criadores e os cientistas tiveram e têm na nossa sociedade um papel importantíssimo na criação de narrativas discernidas, visionárias e mobilizadores sobre o que se passa à nossa volta. Desde a antiguidade clássica que a cidadania é definida em termos políticos pelo que se diz e pelo que se faz entre os pares, o que pressupõe um registo uma narrativa sobre isso mesmo. A sobreinformação e a extrema mediação das sociedades contemporâneas colocam questões complexas “na escolha” das narrativas mobilizadoras e ao mesmo tempo “apagam” outras, que sendo potencialmente mobilizadores são abafadas pelo ruído. Os reptos colocados aos criadores são, como no passado “cantar” aqueles que "da lei da morte se vão libertando"? Pensamos que sim. Mas ao mesmo compete-lhes dar mundo a contextos muitas vezes marcados pelo deserto. Cientistas que decidem tornar inteligível ao grande público o que estão fazendo, dão mais mundo à nossa condição porque nos permitem fazer escolhas com mais informação. Criadores que a partir do seu lugar insólito “descobrem” novos percursos e significados para o nosso contexto, abrem novas dimensões da nossa cidadania e exigem de nós o exercicio da alteridade, muitas vezes de forma brutal. E nesse sentido a Arte e Ciência tenderão a ser cada vez mais políticas sendo a tecnologia, neste contexto, instrumental.


A Esperança exige que acreditemos nas nossas possibilidades no futuro. Para isso é necessário que saibamos quem somos e nos aceitemos como somos; ao mesmo tempo, sentindo por dentro a nossa circunstância sejamos capazes de agir sobre ela e prometer ao outro a forma dessa acção. A Memória é o ponto de partida dessa acção e a Arte pode ser o seu catalizador.


JCR
10/30/07

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