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Desenhos: Indira Moreira
O presente documento é a minha contribuição para um livro recém publicado pela Associação para a Promoção e o Desenvolvimento da Sociedade de Informação. O livro chama-se a "Sociedade da Informação - O Percurso Português", coordenado por José Dias Coelho e com prefácio de Jorge Sampaio e é uma colectânea de textos sobre a evolução da Sociedade de Informação em Portugal nos últimos 10 anos.
1.1 Preâmbulo
(1) O presente documento reflecte uma procura pessoal num território entre Cultura, Novas Tecnologias e Direitos Humanos e procura responder a três perguntas, a saber:
1. Qual é o papel que a cultura tem, ou pode ter, na criação de formações sociais mais inclusivas e mais Justas?
2. Qual o papel das tecnologias de informação e comunicação no contexto de 1.?
3. Que boas práticas?
1.2 Cultura
(2) Qual é o papel que a cultura tem ou pode ter na criação de formações sociais mais inclusivas e mais Justas?
(3) Em 2008 a Europa celebra o Ano do Diálogo Intercultural. Que significado tem este evento? Qual o seu contexto?
(4) Contexto 2008 Ano Europeu do Diálogo Intercultural – Do ponto de vista interno, o falhanço da aprovação da Constituição Europeia reflecte uma fragilidade ao nível da coesão e tem consequências sobre essa mesma coesão. No contexto planetário, os Tigres e Dragões Asiáticos, agora fora da jaula, e a politica unilateral dos Estados Unidos determinaram uma perda de massa crítica geo-estratégica da Europa. Numa entrevista recente ao diário espanhol “El Pais”, o ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso lamentava que a Europa, dados os valores que representa, não tivesse maior intervenção. “2008 Ano Europeu do Diálogo Intercultural” propõe-se exactamente intervir ao nível dos valores.
(5) Que valores? Que práticas? Quem? – Desenvolver em conjunto políticas de prosperidade, solidariedade, coesão social e segurança. Usar o diálogo intercultural como uma oportunidade. A Cultura, as instituições e os agentes culturais com uma aproximação mais política, mais interventora e mais comprometida. Apoiar a mudança económica e social (agenda de Lisboa).
(6) Limites da Intervenção- Ao definir um Ano Europeu do Diálogo Inter-cultural centrado na Europa e não no Mundo, retirando aos Estados Membros o carácter cosmopolita e, porque não assumi-lo, pós-colonial, ao escamotear o papel das linguas como geradoras de comunidades planetárias poder-se-á estar a deitar fora o bébé com a água do banho?
(7) Diálogo Intercultural – O diálogo intercultural é uma necessidade das sociedades culturalmente diversas. Com o agravamento dos desiquilíbrios de desenvolvimento ao nível mundial, nomeadamente com a situação cada vez mais grave da África subsariana, a pressão migratória sobre a Europa é cada vez maior. Não cabe neste trabalho avaliar as suas consequências em toda a dimensão mas importa destacar que esta pressão cruza com a escalada de conflitos extremistas de inspiração religiosa e uma pressão dos EUA sobre o mundo para impor os seus métodos de combate ao chamado “terrorismo”. Dentro da Europa a existência de grandes comunidades geradas à volta de identidades étnicas e religiosas associada à reinvidicação do “direito à diferença” gerou e gera grandes tensões aproveitadas muitas vezes duma maneira populista e por grupos políticos de extrema-direita. Isto levou à necessidade de redefinir a própria noção de “direito à diferença” confrontado-a com outros direitos fundamentais e.g. direitos humanos e conjugando-a com a noção de cidadania.
(8) Diálogo Intercultural e Cidadania – A Holanda tem em fase final a definição do canône de Identidade Holandesa. O que é que isto significa num país com uma forte tradição de tolerância e de diálogo inter-cultural e onde ao mesmo tempo a extrema-direita parece ter cada vez maior peso-politico? Provavelmente a Holanda terá atingido o limite da capacidade de gerir a diferença no quadro social actual. Definir o Canône Holandês é um movimento arriscado que, para muitos, cheira a Nazismo mas que, para outros, é uma necessidade de modo a que a cidadania Holandesa se exprima sob a forma de direitos mas também de deveres e que o direito à diferença seja exercido no quadro dessa mesma cidadania e não fora dela.
(9) Diálogo Intercultural e Identidade – Vimos como o “direito à diferença” tem de ser confrontado com os outros direitos das sociedades democráticas. Da mesma maneira o “direito à cidade” implica uma constante negociação de espaços partilhados – físicos ou virtuais. A noção de Multiculturalismo cedeu lugar à de Interculturalismo. A cultura-estática deu lugar à noção de cultura-dinâmica; sentido de pertença evoluiu para um compromisso de cidania; identidade baseada em etnia, raça ou religião assume progressivamente a forma de identidades múltiplas.
(10) Papel da Cultura – Cultura e Diversidade Cultural são consideradas elementos motores do desenvolvimento sócio-económico das corporações e cidades das sociedades contemporâneas. É dado assumido no mundo empresarial que a inovação e a competitividade estão assentes em estruturas capazes de integrar uma diversidade de ponto de vista e culturas em tensão que se resolvem em produtos e serviços mais competitivos. O mesmo raciocínio tem vindo a ser aplicado à gestão das cidades. O mesmo princípio aplicado aos Estados permite olhar para a diversidade cultural não como uma ameaça mas sim como uma oportunidade. A linha divisória é traçada pelo diálogo intercultural. Diversidade Cultural sem Diálogo Inter-cultural tem a entropia típica dos sistemas fechados.
(11) Papel dos agentes Culturais
Nos Balcãs muitos artistas dedicaram-se ao enorme desafio de transformar o inimigo em parceiro. E a pungência do drama vivido criou possivelmente uma das mais exaltantes experiências humanas de negociação de espaços comuns e de diálogo intercultural através das artes. O “coração da matéria” é um livro da Fundação Cultural Europeia (www.eurocult.org ) que descreve o papel das artes e da cultura na integração europeia dos Balcãs e demonstra que a mudança tinha que começar na cabeça das pessoas e para isso era necessário mudar percepções, imagens e padrões culturais.
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1.3 Tecnologias de Informação e Comunicação
(12) Qual o papel que as tecnologias de informação e comunicação têm neste contexto?
(13) As tecnologias de informação e comunicação vieram acrescentar novas formas de exclusão aos contextos de exclusão, alargando e aprofundando as clivagens existentes entre os “que têm” e os “que não têm”. É também verdade que, utilizadas de maneira adequada, as TIC podem ser um instrumento de combate à exclusão. Estes pressupostos levam-nos a rejeitar, antes do mais, uma visão mecanicista de demonização das TIC ou pelo contrário da sua exaltação como panaceia geral.
(14) Para compreender melhor o papel das TIC é necessário tentar entender um mundo em mudança. Para compreender o mundo em mudança é preciso antes do mais libertarmo-nos dos instrumentos conceptuais de análise do real herdados do cartesianismo. Nos últimos anos muitas vezes nos perguntámos: “o mundo vai para onde? Como vai ser o nosso futuro próximo?”. Tentámos identificar tendências e determinar os principais actores. Quase sempre falhámos e acertámos simultâneamente. Porquê? Porque o mundo vai para “todos os lados”. Como falhamos e acertamos ao mesmo tempo, não erramos nem acertamos, isto é, as nossas ferramentas têm de ser substituídas.
(15) A Internet é um bom exemplo do que dissemos. A Internet 1.0 - podemos chamar-lhe assim agora que já existe a 2.0 - trouxe para muitos de nós a utopia de uma sociedade mais justa, baseada no indivíduo capacitado pelas tecnologias e em rede. Numa versão mais radical eraa persona cibernética e mutante, que anunciava o fim da cultura e da sociedade de massas, a emergência do papel do indivíduo simultânemente produtor e consumidor em rede, em comunidade, que tornaria caduca qualquer forma de difusão massificada. Desta maneira, os monopólios e as grandes corporações implodiriam sob o efeito do seu próprio peso e património histórico-cultural. Novas formas de viver e trabalhar eclodiriam por todo o mundo e o capital financeiro antes concentrado em muito poucos, acudiria a esta nova realidade globalizando-a planetariamente. Tal era a utopia da Internet 1.0. Não se pode dizer que tenha acontecido, também não se pode dizer que não o tenha…
(16) O que podemos aprender é que, sem uma visão holística e sem uma praxis, as “coisas passam-nos ao lado”. Existem valores seguros como a ideia de rede. Não porque o conceito seja rico em si mas porque é aberto, plástico, que abre para outros. Existe latente a ideia de que o “ser” - não o consumidor ou até o consumidor/produtor do “Peer to Peer” - mas o “ser” como persona, com o seu livre arbítrio, marca o princípio e fim de qualquer périplo na actividade humana. Neste sentido, todas as aproximações “científicas” ficam contaminadas pelos infinitos factores que levem um ser humano a dizer sim ou não a algo. Aquilo que os analistas financeiros chamam “confiança dos investidores” pode funcionar como ilustração.
(17) Reconduzindo a questão do papel das TIC como instrumentos de inclusão, gostariamos de alinhar algumas conclusões que são uma espécie de sugestão para os agentes de mudança.
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1.4 Boas Práticas
(18) Contribuições para as boas práticas
1. Para combater a exclusão é necessário estar com o “ser” excluído, sendo cada caso um caso.
2. Cada ser excluído pode ser capacitado pelas novas tecnologias para ampliar o seu espaço de cidadania através de “rede”.
3. Sendo as exclusões um produto de contextos abaixo do limiar vital de cidadania, é necessário, nesses casos, intervir globalmente, mudando o contexto.
4. A mudança de contexto está muitas vezes ligada à criação de condições básicas, e humanamente dignas, de subsistência: habitação, saúde, educação,etc.. Muitas vezes o combate à exclusão começa por ser um combate à pobreza.
5. A tentação de combater a exclusão seguindo a hierarquia de necessidades, começando pela alimentação, depois o abrigo, depois a educação, etc. - e onde as TIC estão algures nas camadas de cima - é um beco sem saída. A intervenção tem de ser feita a todos os níveis em simultâneo, reconhecendo a interacção entre eles e procurando sinergias.
6. As tecnologias de informação e comunicação podem ser catalizador dessas sinergias, na medida em que podem ligar os níveis de intervenção, ligar dentro dos territórios de exclusão e ligar estes com o exterior, dando-lhes visibilidade, faces e personalidade.
7. A sustentabilidade dos processos de inclusão passa sempre pelo grau de penetração que as acções de inclusão tiveram, têm, terão na comunidade ou rede a que se destinam, sendo essa comunidade constituída por cidadãos concretos, diferenciados e em livre arbítrio. Rejeitando os processos “cegos” em que se despejam recursos em territórios de exclusão com efeitos quase sempre perversos, poderemos ver os efeitos de intervenções que sem paternalismo e com respeito sirvam, de modo continuado no tempo, a inclusão para a cidadania.
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1.5 Conclusão
(19) É preciso desmistificar a natureza dos territórios de exclusão. Para tanto é necessário combater a ideia de que o social e economicamente “útil” é determinado pela proximidade relativamente à média, ao cânone, sendo as margens condenadas à inutilidade e à dependência perpétua. Procurámos dizer que as margens, satisfeitas determinadas “condições de temperatura e humidade”, contêm elementos essenciais de inovação e progresso nas sociedades contemporâneas, sendo o diálogo intercultural e o combate à exclusão e, instrumentalmente, as novas tecnologias de informação e comunicação, seus viáticos.
12/11/06
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